domingo, 30 de maio de 2010

Copo meio cheio ou meio vazio?

Repensando a Saúde Mental

Muitas vezes na minha prática clínica dou por mim a pensar no tempo que dedico ao patológico (à parte doente) e nas quantas vezes me “esqueço” do são. Acho que talvez seja um “defeito” de psi a tendência para ver primeiro o copo meio vazio, ou seja a predisposição para olhar mais para a patologia do que para a Saúde Mental (copo meio cheio). Mas a verdade é que tal como no copo o individuo é global, e, portanto é sempre constituído tanto pelo são como pelo patológico (pela parte cheia, plena de relações, como pela parte vazia, a solidão, que muitas vezes se associa à perda ou às perdas da vida).


É certo, que como psicóloga clínica, a maioria do meu trabalho se centra na Doença Mental, mas outro momento fundamental têm a ver com a compreensão das partes saudáveis de cada indivíduo, pois são elas que me vão ajudar no trabalho terapêutico. Quando consulto meninos com Perturbações da Comunicação e da Relação (crianças com Perturbações do Espectro do Autismo, por exemplo) costumo dizer que preciso encontrar a sua janela entreaberta, por onde eu possa, num primeiro tempo, espreitar (captar a sua atenção, estabelecer algum contacto ocular e alguma relação), e num segundo momento, depois de estarem prontos e de terem tomando eles a iniciativa de abrir a janela para eu entrar (estabelecendo círculos de comunicação cada vez maiores e mais complexos, desenvolvendo uma relação e comunicação cada vez mais significativa).

Esta é também uma boa metáfora para o Trabalho Terapêutico no geral. Grande parte do meu trabalho deve ser então encontrar o potencial do indivíduo (criança, adolescente ou adulto), os marcadores de Saúde Mental do seu psiquismo (as suas partes sãs) e utilizá-los a seu favor: como facilitadores da criação da Relação Terapêutica (relação entre o paciente e o psicólogo) e como aspectos importantes na determinação das competências evolutivas e da sua capacidade de retoma do seu desenvolvimento saudável, isto é, como predictores da sua capacidade de mudança e da sua consequente evolução.

Com efeito, juntamente com o diagnóstico da patologia será sempre importante um diagnóstico de Saúde Mental!

Mas, então, coloca-se aqui uma nova e complexa questão que importa reflectir:

O que é isso da Saúde Mental?

Para nós psicólogos, principalmente os de orientação dinâmica como eu, a Saúde Mental não consiste num indivíduo ser sólido. Uma pessoa saudável, ao contrário, do que possa dizer o senso comum, não é aquela que suporta tudo, que carrega o mundo às costas com um sorriso nos lábios, que é um pilar resistente da comunidade e da família, que não chora nem deprime. Até porque estes indivíduos, mesmo que inconscientemente, vivem num sofrimento interior insuportável (mas muitas vezes recalcado) que na maioria dos casos apenas se manifesta na parte somática (no corpo), seja por dores de cabeça, tensão nas costas, colites ou muitas outras coisas... Pelo contrário, uma pessoa saudável é aquela que consegue, e que tem a força e a coragem (não se enganem é preciso ter muita coragem) de aceitar dentro de si as “coisas boas” e as “coisas más”. Como diria João dos Santos a Saúde consiste na “pessoa ser capaz de se movimentar livremente dentro de si, e os movimentos de tristeza são tão importantes como os de alegria.”

O Professor Coimbra de Matos diz num dos seus livros: “ O peso da realidade normativa sufoca o desenvolvimento do imaginário e do simbólico.”. Na verdade, pais demasiado rígidos e funcionais, muito preocupados com as rotinas e os deveres diários, muitas vezes não dão espaço à imaginação, acabando por criar: ou crianças tímidas, fechadas sobre si mesmas, contidas, que se sentem pouco aceites e mal compreendidas, pouco amadas, pois não lhes é dado o espaço para comunicarem o seu mundo interior (que como o de qualquer criança saudável se quer pleno de fantasia e imaginação povoado por seres encantados e mágicos que tudo podem mas também por monstros e bruxas assustadores) ou crianças aparentemente muito fortes e desafiadoras, mas que internamente lutam contra si mesmas para não deprimir. A vida mental não pode então, nem deve, reduzir-se à funcionalidade adaptativa, à hiperadaptação à realidade normativa. Não podemos deixar morrer o sonho e o desejo, o impulso e o fantasma, a criatividade. Se o fizermos, corremos o risco de estar a abortar a expressão espontânea dos sentimentos e emoções, que nos permite: a construção e partilha de significado e afecto e a descoberta do outro, ou seja que nos permite construir relações significativas com as pessoas que nos rodeiam. Auto reduzindo-nos ao homem-máquina que executa, produz e relata. Seres funcionais e exemplos de bons comportamentos, desprovidos de vida psicossocial, emocional e pulsional. Isto, não é, nem pode ser considerado Saúde Mental!

É também o Professor Coimbra de Matos que nos abre, mais uma vez, o caminho para uma outra parte desta reflexão chamando à atenção para a globalidade do que comummente se chama Saúde Mental, pois no fundo ela tem sempre um impacto no funcionamento total do sujeito, tanto psicológico como biológico. “ (...) quando uma parcela desse corpo adoece ou “dói”, a doença ou a dor será necessariamente mental e vice-versa.”, diz-nos o Professor. Senão vejamos três possíveis casos: uma adolescente muito ansiosa que sempre que tem uma crise de ansiedade vomita; ou duas crianças que apresentem quadros depressivos, e em que uma tem queixas escolares por dificuldades de concentração e de memória, por exemplo, e a outra tem queixas de irrequietude e de mau comportamento. Pois é, devem estar a pensar que enlouqueci, crianças deprimidas que têm queixas de irrequietude motora?! Assim é, confesso que é muitíssimo comum chegar-me uma criança ao consultório porque os pais ou professores suspeitam de uma hiperactividade com défice de atenção e saí de lá com um diagnóstico de um quadro depressivo. Mas prometo dedicar uma destas crónicas quinzenais ao tema e explicar-vos melhor.

Voltando à Saúde Mental, ou melhor à Saúde, pois já concordamos que uma não existe sem a outra, vamos então levantar mais uma questão:



Quais as manifestações de saúde?

As manifestações de saúde são os recursos saudáveis do indivíduo que lhe permitem fazer frente ao sofrimento, são exemplos disso: a criatividade, uma boa relação com o sono e o sonho, as relações familiares estáveis e principalmente significativas e ainda a capacidade de assumir as suas próprias emoções de forma adequada (já diz o povo nem 8 nem 80), de se zangar ou até de se deprimir, etc. Até porque, como diz Eduardo Sá, ”Tudo isto é vida: instinto de vida: São manifestações saudáveis.”

Para clarificar gostaria de vos deixar alguns exemplos clínicos. Uma criança muito contida com problemas de recusa alimentar mas que usa o desenho e a criatividade como forma de “por cá para fora” os seus sentimentos e emoções, de os elaborar. Um adolescente deprimido e com uma má imagem corporal que usa os sonhos como espaço de acesso à subjectividade, lugar de integração e de simbolização e que os trás para a consulta como facilitadores e impulsionadores de uma nova organização mental e consequentemente como uma nova forma de estar - nova relação com o psicólogo e consigo mesmo. Ou ainda uma criança com uma fobia que usa o jogo e o brincar para no plano simbólico resolver os seus medos e enfrentar os seus “bichos papões”.

Haja Saúde!

Referências consultadas na pesquisa para o texto:


Matos, A. C. (2003). Mais amor menos doença. Lisboa: Climepsi
Sá, E. (2009). Esboço para uma nova psicanálise. Coimbra: Almedina.
Santos, J. (2004). Se não sabe porque é que pergunta?. Lisboa: Assírio & Alvim

Texto publicado na edição de Domingo, 16 de Maio de 2010, do Jornal Açoriano Oriental

sábado, 29 de maio de 2010

A Parentalidade e o pensar-(se)

Ao longo da vida assumimos e desempenhamos múltiplos papéis. Somos filhos, irmãos, conjugues, netos e avós, somos estudantes, profissionais e reformados… Esse nosso ciclo de vida implica assim constantes mudanças. Inspirado em Camões já cantava o José Mário Branco: “Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.” Mudanças essas acompanhadas a par e passo por reajustes e reorganizações psicológicas.

Uma das maiores transformações na vida do ser humano é a paternidade. O nascimento de um pai acompanha, ou devia acompanhar, sempre o nascimento de um filho, mas somos pais antes de o sermos… Com isto quero dizer que antes do nascimento biológico há sempre um nascimento emocional. Assim, somos primeiro pais nas brincadeiras de crianças, nos sonhos, na imaginação… No sonho tudo é possível, podemos ser perfeitos, podemos ser super-pais. Mas o nascimento biológico de um filho traz com ele um bebé real, que sorri e faz gracinhas, que chora e teima em não adormecer, que nos enternece e acaricia, nos surpreende e desafia, mas também nos assusta e desespera. Que nos atemoriza com esta tamanha responsabilidade que é cuidar de um ser tão indefeso e dependente e ao mesmo tempo tão cheio de possibilidades e de vida. É então um reencontro com nós mesmos, com a nossa infância e os nossos pais, com as nossas experiências de crescimento, mas também com as nossas inseguranças, angústias latentes e medos mais primitivos e profundos e com o nosso futuro e até com a nossa própria (i)mortalidade. No fundo nós pais fazemos a mesma caminhada, no processo de aprendizagem da parentalidade, que os nossos filhos no seu desenvolvimento. Com tanto em jogo e com tantos reajustes será que não poderíamos chamar-lhe uma segunda fase dos porquês?

Importa ter em mente uma ideia introduzida por Bégoin, psicanalista francês, que afirma que criar um bebé é também criar um pai e uma mãe. Os pais fazem o bebé, mas o bebé também faz os seus pais. Pelo que cada relação entre pais e filhos é única e irrepetível. O nascimento de um filho é o criar de uma relação totalmente nova entre três pessoas, que crescerá e se desenvolverá, sendo um vínculo para toda a vida. Com efeito, maternalidade e paternalidade (parentalidade) são devires, estados psico-afectivos em evolução e em movimento no tempo, pois têm necessariamente que acompanhar o desenvolvimento da criança, o que implicará mudanças nos próprios pais. A mutualidade e reciprocidade nas relações entre os três protagonistas, interligam-se e influenciam-se mutuamente, sendo todos os três, em algum momento deste crescimento, motores do próprio desenvolvimento. Assim, e como diz Brazelton, pediatra norte-americano de renome e cujos livros são a “bíblia” de muitos pais, quando nasce uma criança nasce uma família, pelo que ao longo dos anos as famílias renascem e reinventam-se muitas vezes.

Ao longo dos tempos a parentalidade sofreu mutações e, consequentemente, a percepção social e pessoal dos papéis parentais. Nas gerações anteriores, cabia à mulher cumprir as funções emocionais, nutritivas e “funcionais” do bebé, enquanto aos pais cabia uma função “instrumental”, nomeadamente a responsabilidade económica e a autoridade social. Com efeito, muitos foram os momentos históricos que levaram a que as mulheres do mundo ocidental começassem gradualmente a mostrar a sua insatisfação com o estatuto secundário que lhes era atribuído. A conquista do direito ao voto no final do século XIX bem como a revolução dos costumes dos anos 60, entre outros movimentos, levaram a que as mulheres no geral, e as mães no particular, exigissem novas oportunidades de crescimento, enfatizando e reivindicando a necessidade não só da satisfação pessoal, como também da escolha individual.

Raphael-Leff, psicanalista e investigadora social com muita prática clínica no trabalho com mulheres grávidas e pais, salienta que a parentalidade, como não podia deixar de ser, foi afectada por esta metamorfose social, pois deixou de ser linear e regida por uma só ideologia, passando a existir várias opções para o seu exercício. Actualmente, é dada aos pais a possibilidade de escolha de como, quando, onde e de que forma exercem a sua parentalidade e respectivos papéis parentais, sendo, no entanto, esta opção influenciada pelas crenças pessoais, baseadas no conhecimento consciente e nas fantasias inconscientes e que irão determinar as orientações e aspirações parentais. O que por muito positivo que seja, e é !!, não vem facilitar de forma nenhuma o nosso papel de pais. Com efeito, de certa maneira as inúmeras formas possíveis de ser pai e as muitas fórmulas que nos são apresentadas por “prestigiados especialistas” e por “mães extremosas” acabam por nos deixar ainda mais confusos e frequentemente mais culpados por não sermos os pais perfeitos do livro x ou do programa de televisão y. Com isto não quero dizer que os livros, os especialistas ou os conselhos dos nossos avós ou amigos não sejam válidos e importantes (eu própria recorro frequentemente aos livros e anseio pelos truques de outras mães mais experientes tendo, em ambos os casos, alguns deles sido muito úteis), quero apenas salientar que muitas das vezes nos fazem sentir ainda menos competentes e mais inseguros

A Hora dos Porquês quer-se assim um espaço aberto e esclarecedor, mais de reflexão do que de respostas feitas. Não pretende ser um receituário nem um manual de instruções mas sim uma viagem a dois (minha e do leitor) pelo mundo da parentalidade, das crianças e das dúvidas de ambos, mas essencialmente um sítio tão cheio de potencialidades, de vida e de perguntas como os nossos próprios filhos. Aqui, procuraremos, se possível em conjunto, responder aos porquês tanto dos pais como dos filhos, ajudando-os a conhecer-se e a compreender-se mutuamente.

Enquanto Psicóloga Clínica e mãe será minha função servir de mediadora nesta página deste processo de descoberta desta nova forma de relação pais-filhos / filhos-pais. Este lugar de partilha e de encontro, e de alguns desencontros também, estou certa, quer-se mais vosso (dos pais e dos filhos) do que meu, no sentido em que espero a vossa imprescindível colaboração, colocando perguntas uns sobre os outros, expressando anseios, relatando sonhos ou até lançando sugestões e temas para reflexão. Naquilo que espero que seja um desafio tanto para mim como para os leitores.
Glossário:



O termo parentalidade deriva da palavra latina parentâle e pode ser definido como “um processo maturativo que leva a uma reestruturação psicoafectiva permitindo a dois adultos tornarem-se pais, isto é, de responder às necessidades físicas, afectivas e psíquicas do(s) seu(s) filho(s), que numa perspectiva antropológica designa os laços de aliança, filiação, etc” (Bayle, 2005, p. 322). Para Stoléru e Morales – Huet (1989), referido por Missonnier (1999), o conceito psicanalítico de parentalidade diz respeito ao conjunto de representações, afectos e comportamentos que o sujeito tem para com o(s) seu(s) filho(s) nascidos, durante a gestação ou ainda nem sequer concebidos. Neste sentido, o processo mental individual de se tornar mãe e pai está intimamente ligado com o desejo da gravidez e da criança e representa uma longa evolução desde a infância, atravessando a adolescência e a idade adulta.


Referências consultadas na pesquisa para o texto:



    Bayle, F.(2005). A parentalidade. In. I. Leal (Coord). Psicologia da gravidez e da parentalidade (pp. 317-346). Lisboa: Fim de Século.

    Bégoin, J. (2005). Do traumatismo do nascimento à emoção estética. Lisboa : Fenda Edições.
    Brazelton, T. & Cramer, B. (1989). A relação mais precoce. Lisboa: Terra Mar
    Matos, A. C. (2002). Identidade sexuada e parentalidades. Revista Portuguesa de Pedopsiquiatria, 16, 11-15.
    Raphael-Leff, J. (2001). Psychological process of childbearing (6ª ed.). Essex: C.P.S.Psychoanalytic
    Stern e Brushweiller-Stern (2000), O nascimento de uma mãe: como a experiência da maternidade transforma uma mulher. Porto: Ambar
    Stoléru, S. (1995). Le couple et le project d’enfant: l’étape initiale du passage à la parentalité. Neuropsychiatrie de l’enfance, 43 (4-5), 164-170.
    Stoléru, S., & Morales-Heut, M. (1989). Processus de recherche et processus psychothérapique. In S. Lebovici, P. Mazet, J.-P. Visier (Coord). L’evaluation des interactions précoces entre le bebé et ses partenaires (pp. 341-357). Paris: Eshel.

Texto publicado na edição de Domingo, 16 de Maio de 2010, do Jornal Açoriano Oriental