quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crescer a brincar, brincar a crescer

“Somos da nossa infância como somos de um país”  
                (Antoine Saint-Exupéry)
Com efeito, a nossa infância tal como a cultura, onde nascemos e crescemos, são ambos fulcrais para o nosso desenvolvimento posterior, principalmente porque nos vão “moldando” como pessoas, tendo um papel fundamental na construção da nossa identidade (identificações).

A metáfora de Exupery remete para a importância dos factores internos e externos ao indivíduo no processo de identificação (a identificação é o processo que leva à identidade). No fundo, o brincar desempenha simultaneamente um papel interno e externo na identificação e a brincar vamos construindo ao mesmo tempo o mundo que nos rodeia e o nosso mundo interior. Mas, na grande maioria das vezes, não brincamos sozinhos, se bem que essas brincadeiras solitárias também sejam importantes, brincamos com o outro, na relação.

O Professor António Coimbra de Matos, psiquiatra e um dos mais importantes psicanalistas portugueses refere: “O Homem é um animal lúdico, o mais lúdico de todos.”. Brincamos ao longo de toda a vida, não por ser uma característica inata ao ser humano mas apenas porque o indivíduo saudável precisa de brincar.


Ao longo do desenvolvimento a brincadeira vai-se estruturando com base naquilo que a criança é capaz de fazer, isto é, no seu nível de desenvolvimento, nas suas competências e interesses. Tornando-se numa forma singular do crescimento global, abrangendo as várias áreas do seu desenvolvimento: cognitivo, afectivo, emocional.

Enquanto crescemos a nossa compreensão do que nos rodeia vai-se transformando pelo que vamos actuando sobre as coisas e o mundo de formas diferentes, aprendendo e assimilando de diversas maneiras: ensaiamos, rimos, imitamos... Na realidade, o brincar permite à criança construir a sua experiência de se relacionar com o mundo e com o outro de forma activa. Pode escolher brincar ou não – poder da escolha - o que estimula a autonomia, a criatividade e responsabilidade, levando a que possa experienciar um sentimento de controlo, tanto sobre o ambiente como sobre si mesma e as suas acções. Ao brincar todas as tentativas são válidas, não há certos e errados, o que reforça o sentimento de controlo dos objectos e de domínio da situação: “Eu sou capaz!”, reforçando a auto-estima e fazendo com que a criança utilize os seus recursos internos e pessoais (sem ter de recorrer a um adulto mais experiente) para ultrapassar as suas dificuldades. O que se revela fundamental no seu futuro enquanto criança, adolescente ou adulto.

Assim através das brincadeiras descobre-se o ambiente, as coisas e as pessoas. Brincar é uma forma natural da criança explorar e descobrir: os limites do corpo, as características dos objectos e do seu funcionamento (é normal que as crianças “partam” os brinquedos pois querem aprender como são por dentro), as reacções das pessoas a determinadas acções, as suas reacções em cada situação, etc. Com efeito, a brincar aprende-se e desenvolve-se um “saber-fazer” e um “saber ser”, podendo-se afirmar que através da brincadeira a criança se treina para a vida real.

Mas para além de tudo isto, brincar é imaginar e criar. É o sítio do sonho, das fantasias, dos príncipes e das princesas, das poções mágicas que resolvem os problemas, dos venenos que acabam com os maus ou mesmo dos finais felizes em que se acorda a bela adormecida com um beijo ou se transforma o sapo num príncipe. É o lugar das soluções irracionais e da desenvoltura, onde a criança pode “interrogar o real e criar a novidade”, tendo o poder de decidir o que é a realidade e de adaptá-la, podendo ao longo deste processo descobrir novos objectos, palavras, ideias e até mesmo emoções, desenvolvendo pensamento original. Se repararmos, com o passar dos anos, as brincadeiras tornam-se cada vez mais próximas da realidade, permitindo às crianças interpretar papéis que futuramente farão parte da sua vida.

Brincar serve igualmente para aprender a gerir emoções, para sentir prazer, para descarregar agressividade de forma saudável e transformá-la em algo novo e criativo (a brincar podemos matar e ressuscitar (ou não) os bonecos, podemos magoar, tratar, podemos ser ladrões, médicos, professores, super-heróis destemidos…).


No fundo, brincar não é mais do que expressar-se, é a linguagem primeira e primária da criança. Mesmo que a criança brinque sozinha e calada ela exprime nessa actividade sentimentos positivos e negativos, projecta o seu mundo e a si mesma nesta linguagem em acção que é a brincadeira. Ao observarmos uma criança a brincar ou se brincarmos com ela podemos aceder ao seu mundo interior, conhecê-la verdadeiramente, mas para isso temos de deixá-la conduzir, sem regras nem restrições, permitindo que tome a iniciativa e nos leve com ela nesta viagem, que se quer a dois, ao seu íntimo. É pois assim a psicoterapia com crianças, uma terapia pelo lúdico onde a brincadeira é forma de linguagem privilegiada para a expressão mais genuína da criança. E como tal muitos pais indignados no consultório nos perguntam como é possível estarem a pagar ao psicólogo para brincar com filho. Pois é, com efeito, brincar é, para além de tudo, terapêutico, como nos diz o Professor António Coimbra de Matos “(…) desintoxica, distrai, repousa e diverte; vale dizer, livra do que está a mais – toxinas, preocupações, dor e angústia -, repara o desgaste e recompõe o equilíbrio, acrescenta prazer e aumenta o bem-estar; isto é, dissolve o desprazer e mal-estar e conquista gozo e alegria. É o melhor antidepressivo e ansiolítico; o mais barato, natural e saboroso; o mais reconfortante e sem efeitos colaterais adversos – remédio ideal, o tónico perfeito.” E se for feito a dois com um alguém, especialmente um técnico (psicólogo ou pedopsiquiatra) que nos compreende e com quem temos uma relação de cumplicidade e intimidade partilhada pode ter efeitos surpreendentes.

Posto isto, parece um paradoxo que brincar seja assim tão importante para o saudável desenvolvimento das crianças e que estas tenham, hoje em dia, cada vez menos tempo para o fazer. Como diria Fernando Pessa “E esta, hein?”


PERGUNTAS CHAVE:

O que é isso do brincar?
Brincar é a linguagem primeira e primária da criança, é a sua forma de expressão principal, mais importante do que a linguagem verbal, propriamente dita. Na brincadeira tudo é possível, é o mundo do imaginário e da criatividade, onde não há (ou não deveria haver) restricções e onde a criança pode projectar o seu mundo e a si mesma, os seus sentimentos positivos e negativos, os seus medos e desejos, as suas alegrias e tristezas...

Podemos crescer enquanto brincamos?
Enquanto a criança brinca ela está a crescer enquanto pessoa (emocional e intelectualmente) e socialmente, na relação com o outro e com o mundo que a rodeia. A o brincar ela descobre o ambiente, as coisas e as pessoas, treinando-se para a vida real. Ao brincar a criança aprende. Aprende: a gerir emoções, a descarregar agressividade de forma saudável e a transformá-la, a criar, a contar, a agrupar, a somar, a dividir, a partilhar e a guardar, a confiar em si, etc .

Alteração no dia da publicação

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