sábado, 29 de maio de 2010

A Parentalidade e o pensar-(se)

Ao longo da vida assumimos e desempenhamos múltiplos papéis. Somos filhos, irmãos, conjugues, netos e avós, somos estudantes, profissionais e reformados… Esse nosso ciclo de vida implica assim constantes mudanças. Inspirado em Camões já cantava o José Mário Branco: “Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.” Mudanças essas acompanhadas a par e passo por reajustes e reorganizações psicológicas.

Uma das maiores transformações na vida do ser humano é a paternidade. O nascimento de um pai acompanha, ou devia acompanhar, sempre o nascimento de um filho, mas somos pais antes de o sermos… Com isto quero dizer que antes do nascimento biológico há sempre um nascimento emocional. Assim, somos primeiro pais nas brincadeiras de crianças, nos sonhos, na imaginação… No sonho tudo é possível, podemos ser perfeitos, podemos ser super-pais. Mas o nascimento biológico de um filho traz com ele um bebé real, que sorri e faz gracinhas, que chora e teima em não adormecer, que nos enternece e acaricia, nos surpreende e desafia, mas também nos assusta e desespera. Que nos atemoriza com esta tamanha responsabilidade que é cuidar de um ser tão indefeso e dependente e ao mesmo tempo tão cheio de possibilidades e de vida. É então um reencontro com nós mesmos, com a nossa infância e os nossos pais, com as nossas experiências de crescimento, mas também com as nossas inseguranças, angústias latentes e medos mais primitivos e profundos e com o nosso futuro e até com a nossa própria (i)mortalidade. No fundo nós pais fazemos a mesma caminhada, no processo de aprendizagem da parentalidade, que os nossos filhos no seu desenvolvimento. Com tanto em jogo e com tantos reajustes será que não poderíamos chamar-lhe uma segunda fase dos porquês?

Importa ter em mente uma ideia introduzida por Bégoin, psicanalista francês, que afirma que criar um bebé é também criar um pai e uma mãe. Os pais fazem o bebé, mas o bebé também faz os seus pais. Pelo que cada relação entre pais e filhos é única e irrepetível. O nascimento de um filho é o criar de uma relação totalmente nova entre três pessoas, que crescerá e se desenvolverá, sendo um vínculo para toda a vida. Com efeito, maternalidade e paternalidade (parentalidade) são devires, estados psico-afectivos em evolução e em movimento no tempo, pois têm necessariamente que acompanhar o desenvolvimento da criança, o que implicará mudanças nos próprios pais. A mutualidade e reciprocidade nas relações entre os três protagonistas, interligam-se e influenciam-se mutuamente, sendo todos os três, em algum momento deste crescimento, motores do próprio desenvolvimento. Assim, e como diz Brazelton, pediatra norte-americano de renome e cujos livros são a “bíblia” de muitos pais, quando nasce uma criança nasce uma família, pelo que ao longo dos anos as famílias renascem e reinventam-se muitas vezes.

Ao longo dos tempos a parentalidade sofreu mutações e, consequentemente, a percepção social e pessoal dos papéis parentais. Nas gerações anteriores, cabia à mulher cumprir as funções emocionais, nutritivas e “funcionais” do bebé, enquanto aos pais cabia uma função “instrumental”, nomeadamente a responsabilidade económica e a autoridade social. Com efeito, muitos foram os momentos históricos que levaram a que as mulheres do mundo ocidental começassem gradualmente a mostrar a sua insatisfação com o estatuto secundário que lhes era atribuído. A conquista do direito ao voto no final do século XIX bem como a revolução dos costumes dos anos 60, entre outros movimentos, levaram a que as mulheres no geral, e as mães no particular, exigissem novas oportunidades de crescimento, enfatizando e reivindicando a necessidade não só da satisfação pessoal, como também da escolha individual.

Raphael-Leff, psicanalista e investigadora social com muita prática clínica no trabalho com mulheres grávidas e pais, salienta que a parentalidade, como não podia deixar de ser, foi afectada por esta metamorfose social, pois deixou de ser linear e regida por uma só ideologia, passando a existir várias opções para o seu exercício. Actualmente, é dada aos pais a possibilidade de escolha de como, quando, onde e de que forma exercem a sua parentalidade e respectivos papéis parentais, sendo, no entanto, esta opção influenciada pelas crenças pessoais, baseadas no conhecimento consciente e nas fantasias inconscientes e que irão determinar as orientações e aspirações parentais. O que por muito positivo que seja, e é !!, não vem facilitar de forma nenhuma o nosso papel de pais. Com efeito, de certa maneira as inúmeras formas possíveis de ser pai e as muitas fórmulas que nos são apresentadas por “prestigiados especialistas” e por “mães extremosas” acabam por nos deixar ainda mais confusos e frequentemente mais culpados por não sermos os pais perfeitos do livro x ou do programa de televisão y. Com isto não quero dizer que os livros, os especialistas ou os conselhos dos nossos avós ou amigos não sejam válidos e importantes (eu própria recorro frequentemente aos livros e anseio pelos truques de outras mães mais experientes tendo, em ambos os casos, alguns deles sido muito úteis), quero apenas salientar que muitas das vezes nos fazem sentir ainda menos competentes e mais inseguros

A Hora dos Porquês quer-se assim um espaço aberto e esclarecedor, mais de reflexão do que de respostas feitas. Não pretende ser um receituário nem um manual de instruções mas sim uma viagem a dois (minha e do leitor) pelo mundo da parentalidade, das crianças e das dúvidas de ambos, mas essencialmente um sítio tão cheio de potencialidades, de vida e de perguntas como os nossos próprios filhos. Aqui, procuraremos, se possível em conjunto, responder aos porquês tanto dos pais como dos filhos, ajudando-os a conhecer-se e a compreender-se mutuamente.

Enquanto Psicóloga Clínica e mãe será minha função servir de mediadora nesta página deste processo de descoberta desta nova forma de relação pais-filhos / filhos-pais. Este lugar de partilha e de encontro, e de alguns desencontros também, estou certa, quer-se mais vosso (dos pais e dos filhos) do que meu, no sentido em que espero a vossa imprescindível colaboração, colocando perguntas uns sobre os outros, expressando anseios, relatando sonhos ou até lançando sugestões e temas para reflexão. Naquilo que espero que seja um desafio tanto para mim como para os leitores.
Glossário:



O termo parentalidade deriva da palavra latina parentâle e pode ser definido como “um processo maturativo que leva a uma reestruturação psicoafectiva permitindo a dois adultos tornarem-se pais, isto é, de responder às necessidades físicas, afectivas e psíquicas do(s) seu(s) filho(s), que numa perspectiva antropológica designa os laços de aliança, filiação, etc” (Bayle, 2005, p. 322). Para Stoléru e Morales – Huet (1989), referido por Missonnier (1999), o conceito psicanalítico de parentalidade diz respeito ao conjunto de representações, afectos e comportamentos que o sujeito tem para com o(s) seu(s) filho(s) nascidos, durante a gestação ou ainda nem sequer concebidos. Neste sentido, o processo mental individual de se tornar mãe e pai está intimamente ligado com o desejo da gravidez e da criança e representa uma longa evolução desde a infância, atravessando a adolescência e a idade adulta.


Referências consultadas na pesquisa para o texto:



    Bayle, F.(2005). A parentalidade. In. I. Leal (Coord). Psicologia da gravidez e da parentalidade (pp. 317-346). Lisboa: Fim de Século.

    Bégoin, J. (2005). Do traumatismo do nascimento à emoção estética. Lisboa : Fenda Edições.
    Brazelton, T. & Cramer, B. (1989). A relação mais precoce. Lisboa: Terra Mar
    Matos, A. C. (2002). Identidade sexuada e parentalidades. Revista Portuguesa de Pedopsiquiatria, 16, 11-15.
    Raphael-Leff, J. (2001). Psychological process of childbearing (6ª ed.). Essex: C.P.S.Psychoanalytic
    Stern e Brushweiller-Stern (2000), O nascimento de uma mãe: como a experiência da maternidade transforma uma mulher. Porto: Ambar
    Stoléru, S. (1995). Le couple et le project d’enfant: l’étape initiale du passage à la parentalité. Neuropsychiatrie de l’enfance, 43 (4-5), 164-170.
    Stoléru, S., & Morales-Heut, M. (1989). Processus de recherche et processus psychothérapique. In S. Lebovici, P. Mazet, J.-P. Visier (Coord). L’evaluation des interactions précoces entre le bebé et ses partenaires (pp. 341-357). Paris: Eshel.

Texto publicado na edição de Domingo, 16 de Maio de 2010, do Jornal Açoriano Oriental

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