sexta-feira, 23 de julho de 2010

Crescer a brincar (o desenvolvimento a partir dos 6 anos)

"A criança que não brinca não é uma criança, mas o homem que não brinca perdeu para sempre a criança que vivia em si e que lhe fará muita falta."
(Pablo Neruda)

Como cantava Rui Veloso "O prometido é devido" e assim hoje vamos falar sobre o brincar (ou não!?) e o desenvolvimento das crianças a partir dos seis anos de idade.

É por volta desta idade que a criança entra na idade escolar. A entrada para a escola primária é sempre uma grande transformação e um marco na vida da criança que se vê obrigada a deixar para trás um mundo pleno de brincadeiras e diversão para encarar o mundo sério (e diga-se na maioria das vezes bastante aborrecido para uma criança tão pequena) dos livros, do aprender a ler, dos horários rígidos... Daí ser muito importante ter a certeza que a criança está preparada para dar este grande salto, não só em termos cognitivos e de desenvolvimento neurológico mas também do ponto de vista psico-afectivo, sendo por vezes, em caso de dúvida, necessária uma Avaliação Psicológica. Digo isto porque assistimos mais frequentemente a uma entrada cada vez mais precoce das crianças para a escola primária,muitas vezes por pedido dos pais, esqueçendo-se estes, nestes casos, que brincar é uma tarefa muito importante e que prepara adultos mais capazes e que a maioria das crianças não beneficia em nada da entrada na escola cedo de mais.

Atente-se que o problema não está, de forma alguma, na entrada para a escola em si, mas sim no facto de hoje em dia, e apesar de termos cada vez mais estudos na área da Psicologia do Desenvolvimento , a pedagogia e a psicologia das crianças andarem de costas viradas. Por exemplo, como podemos compreender, do ponto de vista psicológico, que uma criança irrequieta passe o intervalo de castigo dentro da sala em vez de ir para o recreio correr ou dar uns saltos, mesmo dentro da sala, de forma a "despejar" as suas energias para poder depois concentrar-se nas aulas? As escolas necessitam assim de reactualizar os seus horários escolares intercalando o tempo de concentração e de atenção com actividades físicas energéticas tendo sempre em atenção as necessidades de cada criança, que são sempre diferentes.

É muito importante ter em consideração que a criança precisa de um horário equilibrado com espaço para actividades físicas, intelectuais e sociais, para actividades lúdicas e escolares. É impreterível que a criança tenha actividades organizadas e com regras mas é igualmente importante ter actividades livres.

No dia-a-dia das nossas escolas muitas vezes se esquece o lúdico e é essa questão que os estudiosos da área querem resgatar. Pensar na actividade lúdica enquanto meio educacional, ou seja, utilizar o jogo como instrumento de trabalho, como meio para atingir objectivos predeterminados. Pois através do jogo a criança fornece informações, podendo o lúdico ser útil para trabalhar o desenvolvimento global e até mesmo conteúdos curriculares específicos.

Entre os seis e os dez anos de idade o mundo enche-se de relações, informação, valores, espaço e escolhas. Agora pode-se explorá-lo e construi-lo de forma mais autónoma. O grupo, o desafio e a amizade conduzem a nossa vida. Deixando a criança de ser o centro do mundo (egocentrismo), os únicos sujeitos da acção pois agora compreendem que os outros também possuem objectivos próprios. Nesta fase há também um salto na capacidade de pensar e reflectir sobre as próprias acções, o que possibilita a auto-avaliação. O pensamento adquire a capacidade lógica concreta, o que possibilita as aprendizagens escolares.

O interesse pelo mundo real e concreto aumenta, sendo muito normal que as crianças mostrem entusiasmo em visitar o quartel dos bombeiros, uma estação de televisão, a redacção de um jornal, etc. Aliás, as crianças interessam-se cada vez mais por jogos realistas que reproduzem as situações do dia-a-dia. Veja-se o exemplo da loucura que tem sido em Portugal Continental a Kidzania, que é no fundo uma cidade construída à escala das crianças onde estas podem simular a vida real dos adultos, trabalhando em diferentes profissões e ganhado KidZos para depois poderem aceder aos diferentes serviços da cidade.

Começa a brincadeira cooperativa e o trabalho em equipa e inicia-se o jogo de competição mas, tal como nos refere António Coimbra de Matos, grande Psiquiatra e Psicanalista Português, no jogo podem existir adversários mas não inimigos, a relação é amigável de colaboração e/ou competição sendo construtora da identidade única e singular, do auto-conceito e imagem de si próprio Com efeito, no jogo, a criança pode ensaiar tanto as regras estabelecidas pela sociedade como as variantes dessas regras. Durante o jogo, a criança pode escolher aceitar ou discordar de determinadas "regras", fomentando o seu desenvolvimento social. A actividade lúdica oferece, muitas vezes, a oportunidade de aprender sobre a gestão de conflitos, a negociação, a lealdade e as estratégias, tanto de cooperação como de competição social. Os padrões sociais praticados durante o jogo são padrões de interações sociais que as crianças poderão futuramente utilizar nos seus encontros com o mundo. As crianças antes dos 8 anos gostam de jogar apenas se ganharem mas com o passar do tempo aprendem a perder e a ganhar, com civismo e humildade.

A escola, a família e os amigos são os espaços de relação de excelência para aprender a pensar… Relacionando os saberes com o mundo das suas vivências aprende-se! Encontram prazer na relação, para aprender a gostar de nós e a gostar dos outros. É ainda nesta fase que surgem as grandes perguntas pela primeira vez e em que se constrói a Consciência moral e o Ideal do Eu.

Em suma, neste período é importante aprender: a gerir os conflitos e as frustrações; a conciliar, a argumentar; a gerir as derrotas e a comemorar as vitórias.

Este período de crescimento e desenvolvimento prepara a puberdade e a Adolescência.

PERGUNTAS CHAVE:
 
Quais deviam ser algumas das preocupações da escola primária ?
 
A escola primária devia ter em conta que a criança precisa de um horário equilibrado com espaço para actividades físicas, intelectuais e sociais, para actividades lúdicas e escolares. É impreterível que a criança tenha actividades organizadas e com regras mas é igualmente importante ter actividades livres e fisicas.
Pensar na actividade lúdica enquanto meio educacional.
 
Quais os marcos fundamentais do desenvolvimento dos 6 aos 10 anos?
 
x Aumento da autonomia e do poder de escolha;
x Importancia do grupo e da amizade;
x Maior interesse pelo mundo real e concreto;
x Pensamento lógico-concreto;
xBrincadeira cooperativa e jogos de competição;
xConstrução da Consciência Moral e do Ideal do Eu.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Crescer a brincar (o desenvolvimento dos 0 aos 6)

“Para ela (a criança) aprender é uma brincadeira e toda a brincadeira lhe ensina alguma coisa.”

(Bacus)
 
Hoje vamos continuar a explorar juntos o tema do Brincar, aproveitando-o para conhecer um pouco melhor o desenvolvimento infantil . Assim, esta semana vamos falar das crianças dos 0 aos 6 anos e daqui a quinze dias falaremos então dos mais crescidos (dos 6 anos em diante).

Através da observação de uma criança a brincar podemos, entre muitas outras coisas, aceder ao seu nível de desenvolvimento. Com efeito, a brincadeira é um forte testemunho das capacidades da criança. Como segura os objectos, como se desloca, que estratégias utiliza para atingir os seus objectivos, como reage ao insucesso e ao sucesso, como interage com os outros e lida consigo mesma, são alguns dos muitos parâmetros a ter em conta.

Novas etapas do desenvolvimento da criança significam novas formas de estruturação da brincadeira e novos interesses. Para podermos brincar com os nossos filhos de forma gratificante e promovendo a sua capacidade para brincar e aprender é importante ter em conta: a criança em si, as principais fases de desenvolvimento e o que está em jogo em cada uma delas. Só assim será possível adequar a brincadeira à criança em questão.

De qualquer forma, não nos podemos nunca esquecer que cada criança é um indivíduo único e irrepetível, com o seu ritmo, preferências e interesses específicos que necessitam de ser respeitados.

Durante o primeiro ano de vida o mundo chega ao bebé através do seu próprio corpo e da relação com o outro, permitindo o conhecimento do corpo, do espaço e dos Pais ou cuidadores.

Assim, dos 0-6 meses é a descoberta do corpo e do ambiente. A criança observa os seus pés e mãos, leva-os à boca, toca-os e explora as características sensoriais do que a rodeia: as cores, o brilho, o movimento, as texturas…

Dos 6 -18 meses torna-se mais activa, começa a agarrar, a fazer gestos, a mudar de posição e a deslocar-se. Inicia-se a viagem da descoberta, os jogos de manipulação e os jogos de exercício.

Este é o período sensório-motor, que vai desde o nascimento até um ano e meio de idade. O mundo de interacções, cheiros, paladares, sons e imagens moldam a sua identidade.

Durante este período é fundamental que pais e adultos protejam e estimulem, aproveitando para fomentar a curiosidade natural do bebé, dêem colo, cuidem e criem ritmos, regras e hábitos, incitem a observar, a escutar, a tocar e a deixar-se tocar, aprendendo que há o eu e o outro. É nesta fase que se dá a Vinculação; a aquisição da permanência do objecto, ou seja, o bebé ser capaz de procurar um boneco, por exemplo, quando a mãe o esconde atrás das costas ou sentir prazer ao jogar ao cucu, por saber que apesar de o pai ter a cara escondida que ele não se foi embora; e a angústia do estranho, pois o bebé começa a reconhecer quem lhe é familiar e quem não o é.

Durante os segundo e terceiro anos de vida de uma criança o mundo "cresce" e pode ser explorado em movimento, a criança passa a concretizar-se através da acção. Adquire-se a capacidade de iniciar o jogo pré simbólico, brinca-se de forma convencional e posteriormente de forma imaginativa. Descobre o mundo concreto dos objectos, sendo capaz de os utilizar pela sua função. Por exemplo, as meninas dão de comer às suas bonecas com a colher e o seu pratinho. De seguida, começa a imaginar novos usos para os objectos iniciando o jogo de faz-de-conta, podendo representar mentalmente algo que não está presente, por exemplo através de um desenho ou livro. Esta é a fase que se quer das novas descobertas, da viagem exploratória ao mundo dos sentidos. Devendo-se incentivar que a criança brinque na areia, na terra, com água ou com gelo; que apanhe florinhas ou bichinhos do chão… É também importante jogar com os sons e as palavras, brincar com o humor, moldar plasticina, jogar às escondidas, etc. Nesta etapa é fulcral ( mais uma vez) que pais e adultos protejam e estimulem, dêem colo, criem ritmos, regras e hábitos, mas que também agora imponham limites, sabendo dizer não. A criança tem ainda de aprender a reconhecer o Eu e Outro. O mundo de relações, cheiros, paladares, sons, imagens e segurança explorado em movimento molda a sua identificação. A autonomia "Eu sou capaz!" é adquirida bem como o poder de dizer sim ou dizer não.

Nos quarto e quinto anos de vida o mundo é a relação com os pares e os modelos de comportamentos e atitudes para fazer de conta e experimentar. A criança desenvolve os seus cenários de brincadeira, usando a imaginação e o disfarce, basta um lençol para fazer de fantasma ou um lenço para ser super-homem, sendo também já possivel dar a papa à boneca no prato e na colher imaginária, por exemplo... O mundo torna-se mais rico de relações e é explorado em movimento, em pensamento e afecto. Adquire-se a capacidade de pensar com lógica concreta, o que já lhe permite jogar com os conceitos.

O jogo simbólico do faz de conta de comportamentos e atitudes e as actividades lúdicas de grupo e destreza são agora muito importantes. Tudo o que deseja ou imagina é real pelo que, por volta dos 4 anos, tem grande dificuldade em distinguir a realidade da ficção, aliás o que não compreende imagina. Com efeito, é a idade dos medos e dos pesadelos.

Nesta fase continua a ser essencial que pais e adultos protejam e estimulem, dêem colo, criem ritmos, regras e hábitos,sabendo agora também dizer não e sim, como e porquê, pois assim estão a ensinar os filhos a perguntar e a fazer.

Nesta fase da vida a criança depende ainda muito do adulto, mas pensa mais com o coração e a sua noção de tempo é já, pelo que lida mal com a frustração. Os Pais são os Mestres do mundo e Eu estou no centro do Universo (egocentrismo).

Com efeito, as crianças "quando brincam, têm direito a ter a vista na ponta dos dedos, a cheirar, a sentir, a falar, a rir ou a chorar. Não há, brinquedos maus! A não ser aqueles que servem para afastar as pessoas com quem se pode brincar."(Eduardo Sá). E a nossa função enquanto pais é a de estar lá: para com elas brincar, as proteger e estimular, dando-lhes colo e limites, ao mesmo tempo (o que não é fácil!), ensinando-lhes a sonhar mas também a perguntar e a saber-ser e a saber- fazer, se possível aproveitando cada instante do seu crescimento e todas as suas novas e maravilhosas pequenas-grandes descobertas. Eles crescem num piscar de olhos!
 
PERGUNTAS CHAVE
 
 Quais os princípios orientadores para os pais brincarem com os seus filhos?
 
1. Conhecer bem o nivel de desenvolvimento e os interesses do seu filho;
2. Ter tempo para observar;
3. Ter tempo para brincar;
4. Ter tempo e espaço para deixarem que os vossos filhos vos guiem;
5. Ter tempo para ser criança!

Quais os marcos fundamentais do desenvolvimento dos 0 aos 6 anos?

x No 1º Ano de Vida : Vinculação, Permanência do objecto, Angústia do estranho;
x Nos 2º e 3º Anos de Vida: Autonomia: “Eu sou capaz!, Poder: a importancia do sim e do não;
x Nos 4º e 5º Anos de Vida: Socialização, Egocentrismo, Triangulação: Eu, nós e eles, Poder: A importância das palavras não, eu e sim.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crescer a brincar, brincar a crescer

“Somos da nossa infância como somos de um país”  
                (Antoine Saint-Exupéry)
Com efeito, a nossa infância tal como a cultura, onde nascemos e crescemos, são ambos fulcrais para o nosso desenvolvimento posterior, principalmente porque nos vão “moldando” como pessoas, tendo um papel fundamental na construção da nossa identidade (identificações).

A metáfora de Exupery remete para a importância dos factores internos e externos ao indivíduo no processo de identificação (a identificação é o processo que leva à identidade). No fundo, o brincar desempenha simultaneamente um papel interno e externo na identificação e a brincar vamos construindo ao mesmo tempo o mundo que nos rodeia e o nosso mundo interior. Mas, na grande maioria das vezes, não brincamos sozinhos, se bem que essas brincadeiras solitárias também sejam importantes, brincamos com o outro, na relação.

O Professor António Coimbra de Matos, psiquiatra e um dos mais importantes psicanalistas portugueses refere: “O Homem é um animal lúdico, o mais lúdico de todos.”. Brincamos ao longo de toda a vida, não por ser uma característica inata ao ser humano mas apenas porque o indivíduo saudável precisa de brincar.


Ao longo do desenvolvimento a brincadeira vai-se estruturando com base naquilo que a criança é capaz de fazer, isto é, no seu nível de desenvolvimento, nas suas competências e interesses. Tornando-se numa forma singular do crescimento global, abrangendo as várias áreas do seu desenvolvimento: cognitivo, afectivo, emocional.

Enquanto crescemos a nossa compreensão do que nos rodeia vai-se transformando pelo que vamos actuando sobre as coisas e o mundo de formas diferentes, aprendendo e assimilando de diversas maneiras: ensaiamos, rimos, imitamos... Na realidade, o brincar permite à criança construir a sua experiência de se relacionar com o mundo e com o outro de forma activa. Pode escolher brincar ou não – poder da escolha - o que estimula a autonomia, a criatividade e responsabilidade, levando a que possa experienciar um sentimento de controlo, tanto sobre o ambiente como sobre si mesma e as suas acções. Ao brincar todas as tentativas são válidas, não há certos e errados, o que reforça o sentimento de controlo dos objectos e de domínio da situação: “Eu sou capaz!”, reforçando a auto-estima e fazendo com que a criança utilize os seus recursos internos e pessoais (sem ter de recorrer a um adulto mais experiente) para ultrapassar as suas dificuldades. O que se revela fundamental no seu futuro enquanto criança, adolescente ou adulto.

Assim através das brincadeiras descobre-se o ambiente, as coisas e as pessoas. Brincar é uma forma natural da criança explorar e descobrir: os limites do corpo, as características dos objectos e do seu funcionamento (é normal que as crianças “partam” os brinquedos pois querem aprender como são por dentro), as reacções das pessoas a determinadas acções, as suas reacções em cada situação, etc. Com efeito, a brincar aprende-se e desenvolve-se um “saber-fazer” e um “saber ser”, podendo-se afirmar que através da brincadeira a criança se treina para a vida real.

Mas para além de tudo isto, brincar é imaginar e criar. É o sítio do sonho, das fantasias, dos príncipes e das princesas, das poções mágicas que resolvem os problemas, dos venenos que acabam com os maus ou mesmo dos finais felizes em que se acorda a bela adormecida com um beijo ou se transforma o sapo num príncipe. É o lugar das soluções irracionais e da desenvoltura, onde a criança pode “interrogar o real e criar a novidade”, tendo o poder de decidir o que é a realidade e de adaptá-la, podendo ao longo deste processo descobrir novos objectos, palavras, ideias e até mesmo emoções, desenvolvendo pensamento original. Se repararmos, com o passar dos anos, as brincadeiras tornam-se cada vez mais próximas da realidade, permitindo às crianças interpretar papéis que futuramente farão parte da sua vida.

Brincar serve igualmente para aprender a gerir emoções, para sentir prazer, para descarregar agressividade de forma saudável e transformá-la em algo novo e criativo (a brincar podemos matar e ressuscitar (ou não) os bonecos, podemos magoar, tratar, podemos ser ladrões, médicos, professores, super-heróis destemidos…).


No fundo, brincar não é mais do que expressar-se, é a linguagem primeira e primária da criança. Mesmo que a criança brinque sozinha e calada ela exprime nessa actividade sentimentos positivos e negativos, projecta o seu mundo e a si mesma nesta linguagem em acção que é a brincadeira. Ao observarmos uma criança a brincar ou se brincarmos com ela podemos aceder ao seu mundo interior, conhecê-la verdadeiramente, mas para isso temos de deixá-la conduzir, sem regras nem restrições, permitindo que tome a iniciativa e nos leve com ela nesta viagem, que se quer a dois, ao seu íntimo. É pois assim a psicoterapia com crianças, uma terapia pelo lúdico onde a brincadeira é forma de linguagem privilegiada para a expressão mais genuína da criança. E como tal muitos pais indignados no consultório nos perguntam como é possível estarem a pagar ao psicólogo para brincar com filho. Pois é, com efeito, brincar é, para além de tudo, terapêutico, como nos diz o Professor António Coimbra de Matos “(…) desintoxica, distrai, repousa e diverte; vale dizer, livra do que está a mais – toxinas, preocupações, dor e angústia -, repara o desgaste e recompõe o equilíbrio, acrescenta prazer e aumenta o bem-estar; isto é, dissolve o desprazer e mal-estar e conquista gozo e alegria. É o melhor antidepressivo e ansiolítico; o mais barato, natural e saboroso; o mais reconfortante e sem efeitos colaterais adversos – remédio ideal, o tónico perfeito.” E se for feito a dois com um alguém, especialmente um técnico (psicólogo ou pedopsiquiatra) que nos compreende e com quem temos uma relação de cumplicidade e intimidade partilhada pode ter efeitos surpreendentes.

Posto isto, parece um paradoxo que brincar seja assim tão importante para o saudável desenvolvimento das crianças e que estas tenham, hoje em dia, cada vez menos tempo para o fazer. Como diria Fernando Pessa “E esta, hein?”


PERGUNTAS CHAVE:

O que é isso do brincar?
Brincar é a linguagem primeira e primária da criança, é a sua forma de expressão principal, mais importante do que a linguagem verbal, propriamente dita. Na brincadeira tudo é possível, é o mundo do imaginário e da criatividade, onde não há (ou não deveria haver) restricções e onde a criança pode projectar o seu mundo e a si mesma, os seus sentimentos positivos e negativos, os seus medos e desejos, as suas alegrias e tristezas...

Podemos crescer enquanto brincamos?
Enquanto a criança brinca ela está a crescer enquanto pessoa (emocional e intelectualmente) e socialmente, na relação com o outro e com o mundo que a rodeia. A o brincar ela descobre o ambiente, as coisas e as pessoas, treinando-se para a vida real. Ao brincar a criança aprende. Aprende: a gerir emoções, a descarregar agressividade de forma saudável e a transformá-la, a criar, a contar, a agrupar, a somar, a dividir, a partilhar e a guardar, a confiar em si, etc .

Alteração no dia da publicação

A página A Hora dos Porquês começa, desde hoje, a ser publicada, qinzenalmente, às quartas-feiras, no sítio do costume.

domingo, 30 de maio de 2010

Copo meio cheio ou meio vazio?

Repensando a Saúde Mental

Muitas vezes na minha prática clínica dou por mim a pensar no tempo que dedico ao patológico (à parte doente) e nas quantas vezes me “esqueço” do são. Acho que talvez seja um “defeito” de psi a tendência para ver primeiro o copo meio vazio, ou seja a predisposição para olhar mais para a patologia do que para a Saúde Mental (copo meio cheio). Mas a verdade é que tal como no copo o individuo é global, e, portanto é sempre constituído tanto pelo são como pelo patológico (pela parte cheia, plena de relações, como pela parte vazia, a solidão, que muitas vezes se associa à perda ou às perdas da vida).


É certo, que como psicóloga clínica, a maioria do meu trabalho se centra na Doença Mental, mas outro momento fundamental têm a ver com a compreensão das partes saudáveis de cada indivíduo, pois são elas que me vão ajudar no trabalho terapêutico. Quando consulto meninos com Perturbações da Comunicação e da Relação (crianças com Perturbações do Espectro do Autismo, por exemplo) costumo dizer que preciso encontrar a sua janela entreaberta, por onde eu possa, num primeiro tempo, espreitar (captar a sua atenção, estabelecer algum contacto ocular e alguma relação), e num segundo momento, depois de estarem prontos e de terem tomando eles a iniciativa de abrir a janela para eu entrar (estabelecendo círculos de comunicação cada vez maiores e mais complexos, desenvolvendo uma relação e comunicação cada vez mais significativa).

Esta é também uma boa metáfora para o Trabalho Terapêutico no geral. Grande parte do meu trabalho deve ser então encontrar o potencial do indivíduo (criança, adolescente ou adulto), os marcadores de Saúde Mental do seu psiquismo (as suas partes sãs) e utilizá-los a seu favor: como facilitadores da criação da Relação Terapêutica (relação entre o paciente e o psicólogo) e como aspectos importantes na determinação das competências evolutivas e da sua capacidade de retoma do seu desenvolvimento saudável, isto é, como predictores da sua capacidade de mudança e da sua consequente evolução.

Com efeito, juntamente com o diagnóstico da patologia será sempre importante um diagnóstico de Saúde Mental!

Mas, então, coloca-se aqui uma nova e complexa questão que importa reflectir:

O que é isso da Saúde Mental?

Para nós psicólogos, principalmente os de orientação dinâmica como eu, a Saúde Mental não consiste num indivíduo ser sólido. Uma pessoa saudável, ao contrário, do que possa dizer o senso comum, não é aquela que suporta tudo, que carrega o mundo às costas com um sorriso nos lábios, que é um pilar resistente da comunidade e da família, que não chora nem deprime. Até porque estes indivíduos, mesmo que inconscientemente, vivem num sofrimento interior insuportável (mas muitas vezes recalcado) que na maioria dos casos apenas se manifesta na parte somática (no corpo), seja por dores de cabeça, tensão nas costas, colites ou muitas outras coisas... Pelo contrário, uma pessoa saudável é aquela que consegue, e que tem a força e a coragem (não se enganem é preciso ter muita coragem) de aceitar dentro de si as “coisas boas” e as “coisas más”. Como diria João dos Santos a Saúde consiste na “pessoa ser capaz de se movimentar livremente dentro de si, e os movimentos de tristeza são tão importantes como os de alegria.”

O Professor Coimbra de Matos diz num dos seus livros: “ O peso da realidade normativa sufoca o desenvolvimento do imaginário e do simbólico.”. Na verdade, pais demasiado rígidos e funcionais, muito preocupados com as rotinas e os deveres diários, muitas vezes não dão espaço à imaginação, acabando por criar: ou crianças tímidas, fechadas sobre si mesmas, contidas, que se sentem pouco aceites e mal compreendidas, pouco amadas, pois não lhes é dado o espaço para comunicarem o seu mundo interior (que como o de qualquer criança saudável se quer pleno de fantasia e imaginação povoado por seres encantados e mágicos que tudo podem mas também por monstros e bruxas assustadores) ou crianças aparentemente muito fortes e desafiadoras, mas que internamente lutam contra si mesmas para não deprimir. A vida mental não pode então, nem deve, reduzir-se à funcionalidade adaptativa, à hiperadaptação à realidade normativa. Não podemos deixar morrer o sonho e o desejo, o impulso e o fantasma, a criatividade. Se o fizermos, corremos o risco de estar a abortar a expressão espontânea dos sentimentos e emoções, que nos permite: a construção e partilha de significado e afecto e a descoberta do outro, ou seja que nos permite construir relações significativas com as pessoas que nos rodeiam. Auto reduzindo-nos ao homem-máquina que executa, produz e relata. Seres funcionais e exemplos de bons comportamentos, desprovidos de vida psicossocial, emocional e pulsional. Isto, não é, nem pode ser considerado Saúde Mental!

É também o Professor Coimbra de Matos que nos abre, mais uma vez, o caminho para uma outra parte desta reflexão chamando à atenção para a globalidade do que comummente se chama Saúde Mental, pois no fundo ela tem sempre um impacto no funcionamento total do sujeito, tanto psicológico como biológico. “ (...) quando uma parcela desse corpo adoece ou “dói”, a doença ou a dor será necessariamente mental e vice-versa.”, diz-nos o Professor. Senão vejamos três possíveis casos: uma adolescente muito ansiosa que sempre que tem uma crise de ansiedade vomita; ou duas crianças que apresentem quadros depressivos, e em que uma tem queixas escolares por dificuldades de concentração e de memória, por exemplo, e a outra tem queixas de irrequietude e de mau comportamento. Pois é, devem estar a pensar que enlouqueci, crianças deprimidas que têm queixas de irrequietude motora?! Assim é, confesso que é muitíssimo comum chegar-me uma criança ao consultório porque os pais ou professores suspeitam de uma hiperactividade com défice de atenção e saí de lá com um diagnóstico de um quadro depressivo. Mas prometo dedicar uma destas crónicas quinzenais ao tema e explicar-vos melhor.

Voltando à Saúde Mental, ou melhor à Saúde, pois já concordamos que uma não existe sem a outra, vamos então levantar mais uma questão:



Quais as manifestações de saúde?

As manifestações de saúde são os recursos saudáveis do indivíduo que lhe permitem fazer frente ao sofrimento, são exemplos disso: a criatividade, uma boa relação com o sono e o sonho, as relações familiares estáveis e principalmente significativas e ainda a capacidade de assumir as suas próprias emoções de forma adequada (já diz o povo nem 8 nem 80), de se zangar ou até de se deprimir, etc. Até porque, como diz Eduardo Sá, ”Tudo isto é vida: instinto de vida: São manifestações saudáveis.”

Para clarificar gostaria de vos deixar alguns exemplos clínicos. Uma criança muito contida com problemas de recusa alimentar mas que usa o desenho e a criatividade como forma de “por cá para fora” os seus sentimentos e emoções, de os elaborar. Um adolescente deprimido e com uma má imagem corporal que usa os sonhos como espaço de acesso à subjectividade, lugar de integração e de simbolização e que os trás para a consulta como facilitadores e impulsionadores de uma nova organização mental e consequentemente como uma nova forma de estar - nova relação com o psicólogo e consigo mesmo. Ou ainda uma criança com uma fobia que usa o jogo e o brincar para no plano simbólico resolver os seus medos e enfrentar os seus “bichos papões”.

Haja Saúde!

Referências consultadas na pesquisa para o texto:


Matos, A. C. (2003). Mais amor menos doença. Lisboa: Climepsi
Sá, E. (2009). Esboço para uma nova psicanálise. Coimbra: Almedina.
Santos, J. (2004). Se não sabe porque é que pergunta?. Lisboa: Assírio & Alvim

Texto publicado na edição de Domingo, 16 de Maio de 2010, do Jornal Açoriano Oriental

sábado, 29 de maio de 2010

A Parentalidade e o pensar-(se)

Ao longo da vida assumimos e desempenhamos múltiplos papéis. Somos filhos, irmãos, conjugues, netos e avós, somos estudantes, profissionais e reformados… Esse nosso ciclo de vida implica assim constantes mudanças. Inspirado em Camões já cantava o José Mário Branco: “Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre, tomando sempre novas qualidades.” Mudanças essas acompanhadas a par e passo por reajustes e reorganizações psicológicas.

Uma das maiores transformações na vida do ser humano é a paternidade. O nascimento de um pai acompanha, ou devia acompanhar, sempre o nascimento de um filho, mas somos pais antes de o sermos… Com isto quero dizer que antes do nascimento biológico há sempre um nascimento emocional. Assim, somos primeiro pais nas brincadeiras de crianças, nos sonhos, na imaginação… No sonho tudo é possível, podemos ser perfeitos, podemos ser super-pais. Mas o nascimento biológico de um filho traz com ele um bebé real, que sorri e faz gracinhas, que chora e teima em não adormecer, que nos enternece e acaricia, nos surpreende e desafia, mas também nos assusta e desespera. Que nos atemoriza com esta tamanha responsabilidade que é cuidar de um ser tão indefeso e dependente e ao mesmo tempo tão cheio de possibilidades e de vida. É então um reencontro com nós mesmos, com a nossa infância e os nossos pais, com as nossas experiências de crescimento, mas também com as nossas inseguranças, angústias latentes e medos mais primitivos e profundos e com o nosso futuro e até com a nossa própria (i)mortalidade. No fundo nós pais fazemos a mesma caminhada, no processo de aprendizagem da parentalidade, que os nossos filhos no seu desenvolvimento. Com tanto em jogo e com tantos reajustes será que não poderíamos chamar-lhe uma segunda fase dos porquês?

Importa ter em mente uma ideia introduzida por Bégoin, psicanalista francês, que afirma que criar um bebé é também criar um pai e uma mãe. Os pais fazem o bebé, mas o bebé também faz os seus pais. Pelo que cada relação entre pais e filhos é única e irrepetível. O nascimento de um filho é o criar de uma relação totalmente nova entre três pessoas, que crescerá e se desenvolverá, sendo um vínculo para toda a vida. Com efeito, maternalidade e paternalidade (parentalidade) são devires, estados psico-afectivos em evolução e em movimento no tempo, pois têm necessariamente que acompanhar o desenvolvimento da criança, o que implicará mudanças nos próprios pais. A mutualidade e reciprocidade nas relações entre os três protagonistas, interligam-se e influenciam-se mutuamente, sendo todos os três, em algum momento deste crescimento, motores do próprio desenvolvimento. Assim, e como diz Brazelton, pediatra norte-americano de renome e cujos livros são a “bíblia” de muitos pais, quando nasce uma criança nasce uma família, pelo que ao longo dos anos as famílias renascem e reinventam-se muitas vezes.

Ao longo dos tempos a parentalidade sofreu mutações e, consequentemente, a percepção social e pessoal dos papéis parentais. Nas gerações anteriores, cabia à mulher cumprir as funções emocionais, nutritivas e “funcionais” do bebé, enquanto aos pais cabia uma função “instrumental”, nomeadamente a responsabilidade económica e a autoridade social. Com efeito, muitos foram os momentos históricos que levaram a que as mulheres do mundo ocidental começassem gradualmente a mostrar a sua insatisfação com o estatuto secundário que lhes era atribuído. A conquista do direito ao voto no final do século XIX bem como a revolução dos costumes dos anos 60, entre outros movimentos, levaram a que as mulheres no geral, e as mães no particular, exigissem novas oportunidades de crescimento, enfatizando e reivindicando a necessidade não só da satisfação pessoal, como também da escolha individual.

Raphael-Leff, psicanalista e investigadora social com muita prática clínica no trabalho com mulheres grávidas e pais, salienta que a parentalidade, como não podia deixar de ser, foi afectada por esta metamorfose social, pois deixou de ser linear e regida por uma só ideologia, passando a existir várias opções para o seu exercício. Actualmente, é dada aos pais a possibilidade de escolha de como, quando, onde e de que forma exercem a sua parentalidade e respectivos papéis parentais, sendo, no entanto, esta opção influenciada pelas crenças pessoais, baseadas no conhecimento consciente e nas fantasias inconscientes e que irão determinar as orientações e aspirações parentais. O que por muito positivo que seja, e é !!, não vem facilitar de forma nenhuma o nosso papel de pais. Com efeito, de certa maneira as inúmeras formas possíveis de ser pai e as muitas fórmulas que nos são apresentadas por “prestigiados especialistas” e por “mães extremosas” acabam por nos deixar ainda mais confusos e frequentemente mais culpados por não sermos os pais perfeitos do livro x ou do programa de televisão y. Com isto não quero dizer que os livros, os especialistas ou os conselhos dos nossos avós ou amigos não sejam válidos e importantes (eu própria recorro frequentemente aos livros e anseio pelos truques de outras mães mais experientes tendo, em ambos os casos, alguns deles sido muito úteis), quero apenas salientar que muitas das vezes nos fazem sentir ainda menos competentes e mais inseguros

A Hora dos Porquês quer-se assim um espaço aberto e esclarecedor, mais de reflexão do que de respostas feitas. Não pretende ser um receituário nem um manual de instruções mas sim uma viagem a dois (minha e do leitor) pelo mundo da parentalidade, das crianças e das dúvidas de ambos, mas essencialmente um sítio tão cheio de potencialidades, de vida e de perguntas como os nossos próprios filhos. Aqui, procuraremos, se possível em conjunto, responder aos porquês tanto dos pais como dos filhos, ajudando-os a conhecer-se e a compreender-se mutuamente.

Enquanto Psicóloga Clínica e mãe será minha função servir de mediadora nesta página deste processo de descoberta desta nova forma de relação pais-filhos / filhos-pais. Este lugar de partilha e de encontro, e de alguns desencontros também, estou certa, quer-se mais vosso (dos pais e dos filhos) do que meu, no sentido em que espero a vossa imprescindível colaboração, colocando perguntas uns sobre os outros, expressando anseios, relatando sonhos ou até lançando sugestões e temas para reflexão. Naquilo que espero que seja um desafio tanto para mim como para os leitores.
Glossário:



O termo parentalidade deriva da palavra latina parentâle e pode ser definido como “um processo maturativo que leva a uma reestruturação psicoafectiva permitindo a dois adultos tornarem-se pais, isto é, de responder às necessidades físicas, afectivas e psíquicas do(s) seu(s) filho(s), que numa perspectiva antropológica designa os laços de aliança, filiação, etc” (Bayle, 2005, p. 322). Para Stoléru e Morales – Huet (1989), referido por Missonnier (1999), o conceito psicanalítico de parentalidade diz respeito ao conjunto de representações, afectos e comportamentos que o sujeito tem para com o(s) seu(s) filho(s) nascidos, durante a gestação ou ainda nem sequer concebidos. Neste sentido, o processo mental individual de se tornar mãe e pai está intimamente ligado com o desejo da gravidez e da criança e representa uma longa evolução desde a infância, atravessando a adolescência e a idade adulta.


Referências consultadas na pesquisa para o texto:



    Bayle, F.(2005). A parentalidade. In. I. Leal (Coord). Psicologia da gravidez e da parentalidade (pp. 317-346). Lisboa: Fim de Século.

    Bégoin, J. (2005). Do traumatismo do nascimento à emoção estética. Lisboa : Fenda Edições.
    Brazelton, T. & Cramer, B. (1989). A relação mais precoce. Lisboa: Terra Mar
    Matos, A. C. (2002). Identidade sexuada e parentalidades. Revista Portuguesa de Pedopsiquiatria, 16, 11-15.
    Raphael-Leff, J. (2001). Psychological process of childbearing (6ª ed.). Essex: C.P.S.Psychoanalytic
    Stern e Brushweiller-Stern (2000), O nascimento de uma mãe: como a experiência da maternidade transforma uma mulher. Porto: Ambar
    Stoléru, S. (1995). Le couple et le project d’enfant: l’étape initiale du passage à la parentalité. Neuropsychiatrie de l’enfance, 43 (4-5), 164-170.
    Stoléru, S., & Morales-Heut, M. (1989). Processus de recherche et processus psychothérapique. In S. Lebovici, P. Mazet, J.-P. Visier (Coord). L’evaluation des interactions précoces entre le bebé et ses partenaires (pp. 341-357). Paris: Eshel.

Texto publicado na edição de Domingo, 16 de Maio de 2010, do Jornal Açoriano Oriental